Quando o coração dá à luz

Por – Maura Hayas

Jana e João têm 5 filhos, 3 deles autistas. Daniel é um orgulhoso pai solo de 2 meninas. Jorge e Ana são pais de gêmeos. Neusa tem nada mais nada menos do que 16 filhos com idades entre 12 e 30 anos. Esses são exemplos reais de pessoas que se tornaram pais e mães pela adoção.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), existem no Sistema Nacional de Adoção 5.233 disponíveis para adoção, sendo 3.682, crianças acima de 8 anos e 1.540 abaixo de 8 anos. Guarde esses números. O mesmo Sistema, que desde 2019 instituiu uma fila única de pretendentes à adoção, conta com 33.331 pretendentes ativos. Considerando que são apenas 5.233 crianças disponíveis para adoção, podemos concluir que sobra pretendente e, portanto, temos adotantes para todas as crianças, certo? Errado.

A conta não fecha
Desses mais de 33 mil pretendentes 17.548 preferem crianças brancas, contra 8.904 que aceitam crianças negras. A conta aperta quando olhamos para as crianças e vemos que apenas 1.538 são brancas contra 3.632 pretas e pardas. Ah, mas então a gente pode focar nas adoções de crianças pretas e pardas, assim a fila anda mais rápido. Errado. O segundo problema é a idade. Cerca de 80% dos candidatos buscam crianças com até 3 anos. Porém, cerca de 70% das crianças disponíveis tem acima de 8 anos. Ainda complicam essa conta variáveis como doenças, presença de deficiências físicas e intelectuais (15%) e número de irmãos (40% das crianças têm irmãos). É uma equação difícil de resolver, especialmente num país com tanta desigualdade.
Um estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada) de 2019 mostrou que bebês até 3 anos têm fila de espera de milhares de pretendentes, enquanto adolescentes muitas vezes não têm nenhum candidato. Crianças com deficiência ou doenças crônicas podem esperar até 5 anos ou mais para serem adotadas. Já um adolescente de 14 ou 15 anos pode ser adotado em 8 meses caso haja um único pretendente.


Evoluímos, mas temos desafios
Embora o número de adoções tenha se mantido praticamente o mesmo nos últimos anos (cerca de 3mil/ano), o processo evoluiu em diversidade e inclusão. O reconhecimento da adoção homoafetiva (STF, 2011) e a prioridade a grupos de irmãos (ECA, art. 50, §7º) agilizaram a adoção por casais homoafetivos (cerca de 1 a 2 % das adoções). A criação do Sistema Nacional de Adoção também contribuiu para agilizar o processo com a digitalização de cadastros. Campanhas de conscientização como “Não me espere, me adote” (CNJ) e ONGs especializadas (ex.: Aconchego, ANGAAD) têm trabalhado para desmistificar a adoção tardia e interracial. Além disso, celebridades como Angelina Jolie, Madonna, Marcelo Antony, Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, Astrid Fontenelle, Paulo Gustavo, entre outros, têm mostrado que a adoção é um ato de amor, independente dos laços biológicos. Falta um longo caminho, mas a exposição de casos por pais adotantes mostra que há esperança de mudar esse cenário.

“Ela nasceu pra mim”
A Dra. Simone Neri engrossa o coro de pais adotantes orgulhosos de seus filhos e entusiastas da adoção. “Eu nunca quis engravidar, mas sempre quis ser mãe. Meu marido na época também tinha esse desejo. Naquele tempo não tinha a fila única, então era preciso tirar a documentação necessária e procurar nos abrigos. Uma noite eu sonhei que tinha adotado uma menina negra. Quando acordei insisti com meu ex-marido para irmos procurar, em julho, porque no meu sonho era inverno. Eu ainda não sabia, mas minha filha tinha nascido em junho”.
Problemas de saúde acabaram impedindo o casal de procurar a criança. Mas no fim do ano, o pai da Dra Simone infartou e ela fez uma promessa. “Prometi que ia dar um neto ou neta para ele”. Foi justamente no dia do próprio aniversário que a Dra Simone finalmente conheceu sua filha. “Era minha folga e resolvemos ir ao abrigo que nos indicaram. Tinha umas 50 crianças, mas não senti no meu coração que minha filha estava ali. A advogada que nos acompanhava nos levou a um outro local, e lá eu vi um carrinho com 2 perninhas balançando e o meu coração pulou. Corri até o carrinho, ela estava dormindo, mas acordou e sorriu pra mim. Eu a peguei no colo e Deus falou comigo: Vitória. Aí eu disse pro meu marido que era ela e ele a pegou no colo. Nesse momento, ela passou a mãozinha no rosto dele e nós dois começamos a chorar. Ali tivemos certeza”, conta emocionada.
O casal pediu a guarda provisória, que veio uma semana depois. “Eu sonhei com ela, eu a conheci no dia do meu aniversário, tenho certeza que a Vitória nasceu pra mim”, conta, orgulhosa.

Não desistir jamais
No caso da Dra Simone Neri foi bastante complexo o processo, que durou dois anos até a adoção definitiva. “O processo é muito desgastante porque o tempo todo você é monitorado e julgado e vive sob pressão. Mas eu creio que isso seja necessário para dar transparência e proteger o processo. Nunca passou pela minha cabeça desistir, mesmo nas maiores dificuldades que enfrentamos. A Vitória é minha filha que nasceu do meu coração”.
Hoje, Vitória é uma moça de 18 anos, incrível, cursando ciências biológicas e lutando por suas ideias com seu jeito único de ver o mundo. “Sou uma mãe muito coruja, quando vejo minha filha já adulta, lutando pela sua vida, seus amores, seus ideais eu vejo que nossa história estava escrita. Morro de orgulho da Vitória”.
A quem deseja adotar, Dra Simone aconselha: “Busque apoio psicológico porque o processo é desgastante, mas é um crescimento imenso para nós, como seres humanos, porque é o amor se multiplicando para além da biologia, e nos mostrando como podemos ser todos conectados independente de cor, raça, religião, idade. Somos capazes de amar infinitamente. Como eu amo minha filha Vitória”, conclui. (confira a coluna Saúde para Todos em que a Dra Simone Neri conta sua história).

Quer adotar? Informe-se no site https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao/

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