Câmara aprova licença menstrual,mas trabalhadoras continuam sem proteção legal
Para especialistas, PL representa um avanço histórico na proteção dos direitos humanos e da saúde das mulheres, mas alertam que, sem sanção presidencial, o país segue negligenciando dores incapacitantes que afetam milhões
Em outubro, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) 1249/22, que prevê licença remunerada de até dois dias por mês para mulheres com sintomas graves associados ao fluxo menstrual. O texto, que ainda será analisado pelo Senado, reconhece oficialmente uma realidade muitas vezes invisibilizada: a de mulheres que convivem com dores incapacitantes e sangramentos intensos, sintomas que vão muito além do desconforto menstrual comum.
Segundo o projeto, o objetivo é garantir equidade e prevenção em saúde ocupacional. Cerca de 15% das mulheres enfrentam sintomas graves, com fortes dores na região inferior do abdômen e cólicas intensas, que chegam, muitas vezes, a prejudicar a rotina, aponta o texto.
A medida se insere na tradição constitucional sobre dignidade da pessoa humana como fundamento da República, prevista no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. “O texto do PL reconhece um problema invisibilizado há décadas: o sofrimento físico e emocional de mulheres que, mesmo diante de fortes dores, continuam trabalhando por medo de perder o emprego ou sofrer descontos salariais”, afirma Talitha Fonseca, advogada especialista em Direitos Humanos. “Ao explicitar sintomas como náuseas, fadiga, febre e dores intensas, o projeto rompe com a naturalização da dor feminina e reconhece o direito de adoecer sem ser punida por isso”, contextualiza.
Para o ginecologista Marcos Maia, chefe do Departamento de Endometriose e Cirurgia Ginecológica da Rede Hapvida e fundador do Instituto Maia, a proposta da licença menstrual finalmente traduz, em política pública, uma realidade biológica e clínica frequentemente desconsiderada. “A dor menstrual incapacitante não é normal. Muitas vezes, ela é o principal sinal de doenças como endometriose, adenomiose e miomas uterinos. A mulher não quer faltar ao trabalho; ela quer ser compreendida, diagnosticada e tratada com respeito”, explica.
Estudos publicados no International Journal of Gynecology & Obstetrics mostram que até 95% das mulheres com fluxo intenso ou cólicas severas relatam impacto direto em sua rotina, produtividade e bem-estar emocional. Mesmo diante desses dados, a dor feminina segue invisibilizada — no lar, no trabalho e, muitas vezes, nos consultórios médicos.
“Existe um silêncio histórico sobre a dor da mulher. Um silêncio que nasce do machismo estrutural e se mantém por falta de escuta clínica e empatia social. Políticas como a licença menstrual são importantes porque rompem esse silêncio e reconhecem que cuidar da mulher é um ato de saúde pública”, afirma o médico.
O debate sobre a licença menstrual também toca o artigo 6º da Constituição, que estabelece a saúde como um direito social fundamental. Ao prever que a trabalhadora possa se ausentar por até dois dias mensais, mediante laudo médico, o projeto traduz o direito à saúde em proteção concreta, reconhecendo que, em determinadas situações, o cuidado clínico precisa ser complementado por resguardo laboral.
“O princípio da igualdade exige que a lei reconheça as diferenças biológicas e sociais para alcançar equidade real. Tratar igualmente pessoas que vivem realidades distintas é, na prática, perpetuar desigualdades”, explica Talitha. “Por isso, a licença menstrual representa um avanço na efetivação da igualdade material entre homens e mulheres, ao incorporar as especificidades do corpo feminino na legislação trabalhista.”
A proposta também dialoga com parâmetros internacionais de direitos humanos e com o conceito de “trabalho decente” da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que preconiza condições laborais que respeitem a saúde e a dignidade do trabalhador. “Forçar mulheres a permanecerem em atividade sob dor intensa é uma violação silenciosa e cotidiana desse princípio”, avalia a advogada. “A licença menstrual é, portanto, um passo necessário para adequar o Brasil às diretrizes internacionais de proteção à mulher trabalhadora.”
Entre o avanço e a espera
A proposta da licença menstrual se soma ao PL 1069/23, conhecido como Lei da Endometriose, que reconhece a doença como incapacitante e propõe atendimento integral pelo Sistema Único de Saúde (SUS), incluindo acesso a exames, terapias complementares e medicamentos. Ambos os projetos têm caráter simbólico e estrutural: representam passos concretos para integrar a saúde feminina à agenda pública e trabalhista.
Ainda assim, nenhum deles foi sancionado, o que significa que o reconhecimento legal pleno do direito à saúde menstrual e reprodutiva segue pendente. “Enquanto o corpo feminino continuar à margem da lei, continuaremos a legislar para metade da população. A saúde das mulheres não pode depender da coragem de suportar a dor, precisa do amparo do Estado e da empatia da sociedade”, conclui Marcos Maia.
Mais do que um benefício trabalhista, a licença menstrual é um instrumento de justiça de gênero. É o passo que transforma o direito à saúde em prática concreta e que reafirma: dignidade não é privilégio, é um direito humano.
